domingo, 24 de março de 2013

Sobre o luto.


Entra...mas não repara a bagunça; é que andei bebendo muito, comendo pouco, dormindo quase nada e esquecendo de abrir as janelas. Os boatos são verdadeiros, agora você pode ver com seus próprios olhos...ela foi mesmo embora. O ruim de quando alguém que a gente ama morre é saber que a pessoa não teve escolha, ela poderia ficar comigo pra sempre, ou me trair, ou ir embora simplesmente ou até ter um filho meu, criar um cachorro, plantar um jardim... mas ela foi levada sem ter o direito de escolher que chá ela tomaria amanhã.
Se sente...mas não repara na falta de fotos; eu guardei todas numa caixa lá no quarto, junto com aquelas cortinas que ela bordou e as almofadas preferidas dela. De repente aquela porção de fotos espalhadas pela casa me assombraram e me fizeram mal. Os olhos verdes...não consigo parar de pensar nos seus olhos verdes...e nas tardes que ela passou bordando aquelas cortinas.
Ela tinha tudo que se esperava de uma mulher pra passar o resto da sua vida agarrado a ela. Sabe aquela inteligência assustadora?! Ela conseguia manter o nível da conversa sempre elevado e falava bem sobre quase todos os assuntos. Por vezes eu me perguntava de onde vinha tanta coisa que ela sabia...e aquele sorriso!!! Era o melhor bom dia de todos...ver ela sorrindo e sempre que percebia meu olhar de admiração se envergonhava e colocava a mão na boca "não amor...acordei com bafinho". Sem contar nas coisas maravilhosas que ela cozinhava e tudo nela...simplesmente tudo me agradava.
Pode fumar aqui sim, aproveita e me dá um cigarro que eu vou fumar também...mas não repara se eu chorar na sua frente. Eu sei que uma das coisas mais estranhas do mundo pra você é ver um marmanjo como eu chorando, são momentos raros...mas não tenho mais aquele emocional invejável. Nem aquela aparência invejável...nem sei há quantos dias eu não faço a barba, ou passei um pente no cabelo. Não...não se preocupe. O luto não dura pra sempre meu caro irmão, e um dia eu vou voltar a ser aquele cara organizado...mas por enquanto deixa a merda feder...foram 5 anos de sangue, suor e América do Sul perdidos em uma noite de angústia naquele maldito hospital. Me deixe sofrer...pelo tempo que eu precisar.
Eu preciso que você entre lá...mas não repara se eu tentar fazer você mudar de ideia. É que tem umas coisas dela pra empacotar, e eu preciso que você faça isso por mim. Não vou ter coragem, na boa! Mas deixa aquele vestido amarelo que ela usou naquele almoço na sua casa, no dia que eu a conheci. E os sapatos vermelhos de usar todas as sextas. Ela amava aquele sapato! Deixava ela da minha altura, toda sexta ela me dizia isso...salvo essas duas coisas, empacote todo o resto e leve daqui...a mãe dela andou me ligando, por favor diga a ela que eu estou bem, que apareço lá semana que vem pra deixar algumas coisas que eu gostaria que ficassem com ela, o presente de dia das mães que a gente já tinha comprado antes do acidente e aquela canequinha que ela tinha desde o tempo da escola.
Tudo bem...me abrace só hoje...mas não repara se eu me acostumar. Talvez eu volte um cara mudado...desses mais - como é que se diz? - inclinado a abraçar os amigos e dizer que ama as pessoas importantes. É que de repente a gente descobre que cada dia pode ser o último, e depois que eu limpar esse apartamento - e me limpar também - eu não vou poder me dar ao luxo de perder boas oportunidades. No mais é isso...


Kamilatavares.

Nenhum comentário:

Postar um comentário