domingo, 21 de julho de 2013

Pi.

- Bem, vai parecer estranho, mas deve fazer uns dez minutos que eu te observo daqui sabia?! Se você realmente quer se jogar, eu tenho duas coisas a dizer: A primeira delas é que o prédio só tem 20 andares, você ficará consciente a queda toda e provavelmente se arrependerá no meio da trajetória, garantindo assim os piores 10 segundos da sua vida. A segunda é que eu serei indiciado como suspeito de um homicídio, então , eu tenho a inevitável missão de te persuadir e convencer você a não fazer isso.

O susto quase a fez cair! Se reequilibrou no parapeito, olhou em volta...viu aquele estranho parado ao lado da porta que dá acesso ao terraço da cobertura e arqueou as sobrancelhas. As luzes foram propositalmente apagadas a fim de que ela pudesse aproveitar a iluminação noturna dos postes na rua, da lua e dos faróis dos carros que passavam lá embaixo.

- Na verdade eu ainda não decidi se me jogo agora ou sei lá...me entupo de remédios...então já que você não quer ser suspeito de nada, sugiro que me deixe decidir sozinha! Esta cobertura é o meu lugar.

- Engraçado - disse ele se aproximando - eu sempre venho aqui pensar nas merdas da vida quando me sinto mal...há uns cinco anos...desde que moro aqui. Então acho que - na verdade - esta cobertura é minha! Você quem está invadindo a minha propriedade.

- Então por onde você andou no último mês? Porque eu venho todas as noites aqui decidir se pulo ou não e nunca te vi por aqui!

- Viajando...negócios...enfim! Parou por um minuto perdido nas lembranças de suas noites insones e mórbidas... - Me chamo Igor...Igor Tavares.

Ela olhou brevemente para o rosto do estranho, deu de ombros e voltou a fitar a calçada.

- Não repare no bigode, não sou mexicano nem nada...preciso manter pra uma peça...um musical.

- Não reparei no bigode...na verdade não reparei em você, está muito escuro e eu estou sem óculos...enfim.

Seguiu-se um silêncio que o incomodou. Ela continuava indiferente.

- Não vou dizer meu nome ok?  Não quero que crie nenhum laço comigo.

- Desce aqui então pra gente conversar um pouco, quer um trago?
vou te chamar de senhora pi, ok?

- Que tal você subir? Porque Pi?

- Daqui dá pra pra ver um Pi tatuado no teu antebraço...

- Observador...já vi que não é tão cego quanto eu!

- Não, já fui...sou mais não.

- Cirurgia?

- Isso, justamente...você é médica?

- Não importa...na verdade se eu fosse médica não me importaria...eles nunca se importam
mas já que você perguntou...minha mãe era médica...psiquiatra.

- Nossa...uma profissão até agradável, hein?!

Ela deu de ombros mais uma vez e ele começou a se sentir desconfortável com a situação.

- Bem...já que tu pode...digamos que...se matar. Eu terei a chance incrível de poder ser totalmente sincero e saber que você levará tudo pro caixão.

Ela riu timidamente por três segundos e quarenta centésimos. Ele cronometrou seus olhos se fechando enquanto os lábios desenhavam uma gota de descontração em suas maçãs do rosto.

- Então me conte o que você quiser! Me diga o seu segredo mais sujo e eu levo ele junto comigo pra calçada lá embaixo, e de lá pro inferno.

- Bem, eu gosto das músicas do Justin Timberlake...não, pera...tem piores.

- Me conte então! Eu - por exemplo - se estivesse na sua situação, vendo alguém querer se jogar...
não hesitaria em empurrar a pessoa sabendo que nunca levaria a culpa pela simples vontade de saber como seria matar alguém.

Igor sobe no parapeito e se senta ao lado dela naquele que ele julga ter sido o ato mais corajoso que ele cometera nos últimos tempos; respirou fundo buscando reunir as ideias e - principalmente - não gaguejar. Tentou manter a conversa da forma mais natural que pôde.

- Sendo assim, deixa eu ficar aqui do seu lado, só assim posso morrer pensando ser um herói.

- Mas quem vai morrer hoje sou eu, esqueceu?
Se quiser seguir minha sugestão e me empurrar eu juro que não volto do além pra te denunciar.

- Tá certo então.

A sirene de uma ambulância que passava apressada na rua ao lado prendeu a atenção dos dois até se esvair.

- Tá frio aqui em cima, poxa...e a visão daqui é terrível, dá até vertigem - disse Igor.

- Labirintite? Ah...esquece esses diagnósticos! Me dá um cigarro? Tá mesmo frio!

- Droga, esqueci a carteira lá embaixo, vai pegar, to com preguiça.

Ela olhou pra ele naquilo que foi um misto de revolta e riso, fez que não com a cabeça e deu um meio sorriso enquanto descia pra buscar os cigarros....

- Você quer que eu desça e desista! Não importa...eu volto amanhã - Subiu no parapeito e arqueou as sobrancelhas em sua teimosia - Eu gosto da vista daqui...gosto de tirar os óculos e olhar as luzes...é como se eu fosse uma câmera com o obturador aberto sabe?!
enfim...

- Câmeras...esse último fim de semana eu estive lá em Guiné Bissau com uma Canon no pescoço, acho que você teria gostado de lá tanto quanto eu.

- Provavelmente...

Tragaram ao mesmo tempo e passaram uma eternidade de trinta segundos em silêncio observando a fumaça e as luzes dos apartamentos do prédio vizinho.

- Eu tenho uma coleção de analógicas. Quando eu morrer...enfim...moro no 314...você pode ir lá pegar. Pode ficar com uma copia da chave.

- Vou tentar lembrar disso, não que essa seja uma situação comum, tipo, estar do lado de uma suicida, mas...
eu sou atrapalhado, esquecido...relapso!

- Faça um esforço, não sou qualquer suicida, sou uma suicida que vai te dar uma coleção de câmeras! Mas sou uma suicida covarde...então pode demorar um tempo...

- Tá certo então...bem, sei lá, tá tarde e frio - gaguejou ele - eu deixo tu subir de novo, prometo! Mas é que eu deixei uma lasanha deliciosa pra matar minha larica lá embaixo e aposto que não vou conseguir comer tudo aquilo sozinho...quer dar um pulo lá?

- Lasanha de que? Com molho de que? Não quero desperdiçar minha última refeição com carne moída e molho de tomate comprado pronto de caixinha.

- Você tá com sorte senhora pi, é de carbonara...molho branco.

- Molho branco...minha especialidade!

- Duvido ser melhor que a minha...

- EI EI EI, Calma rapaz...se desequilibrando assim você vai acabar caindo antes que eu caia e eu vou ter que comer a lasanha sozinha!

- Desculpa! Vacilo meu...enfim, vamos descer?

Eles descem do parapeito e pegam o elevador, e antes que ela pudesse se perguntar onde ele morava, eles chegam ao apartamento 505.

- Conhece o restaurante italiano no final da rua?

- Sim sim conheço, o que tem ele?

- Eu trabalho lá!

- Sério?! Uma cozinheira! Mais uma informação...te chamarei de "Mestre Pi" então!

- Ok, Tavares. Já que você vai me acompanhar na minha última refeição, não me custa nada te dizer onde eu trabalho.

Ele abre a porta e é recepcionado calorosamente por uma cadelinha de laço rosa.

- Ai meu Deus esqueci de amarrar a Nina, ela vai te sujar toda!

- Sem problemas, eu gosto de cachorros - Disse ela enquanto olhava em volta estranhando tanta organização  - Vem cá...você é algum psicopata ou serial killer?

- Bem, acho que não...não tenho coragem de matar uma barata.

- É que o seu apartamento...é...meio que...MUITO ORGANIZADO! Além disso você tem um cachorro, salva mocinhas do suicídio, deve gostar de crianças, fazer algum tipo de caridade...só pode ser um sádico.

- Ah claro, faz todo o sentido do mundo! - Disse irônico.

- Não acredito em boas pessoas.

- O máximo de agito da minha madrugada é ver Toy Story comendo Nutella, maaaas... como estamos em uma zona fantasma da sinceridade, posso dizer que gosto de...como eu posso explicar isso...gosto de observar filha da Senhora Jacqueline descer nos fins da tarde pro trabalho. Aqueles cabelos vermelhos e o jeito estranho que ela tem de se arrumar... me fascinam sabe?! Um dia eu crio coragem pra dizer tudo isso a ela - Disse ele enquanto ria nervosamente e pegava um vinho.

- Um Stalker...sabia!

- A primeira vez foi coincidência, eu estava descendo pra sair com a Nina e esbarrei com ela. Eu usava um boné e óculos escuros, você nunca me reconheceria...sou daquelas pessoas que são coadjuvantes da própria vida.

- Não seria difícil, não reconheço nem a mim... - Disse indiferente.

- Tá bom - Ironizou - senta ali ó...tá ali teu prato, pode começar sem mim, vou ver se acho um vinil bom aqui...deixa eu ver...Cartola, Cazuza...

- Se escolher alguma porcaria eu vou embora!

- Djavan...Fagner...GAL! Isso...Gal Costa!

- Seus vinis estão em ordem alfabética?

- Sim, porque? - Perguntou hesitante.

- TOC? "Ai meu Deus...os diagnósticos, prometi parar com eles" - Pensou alto.

- Prefiro não falar sobre isso.

Ele se levantou, colocou o vinil pra tocar e sentou apreensivo com o seu vinho e seu olhar curioso.

- Minha mãe tinha TOC, mania de psiquiatra achar que tem tudo no mundo, coitada...eu tinha pena dela...

- aposto que ela também tinha de você...reciprocidade...a alma do negócio! Toda e qualquer relação só se sustenta com reciprocidade, até o ódio! Odiar alguém que não te odeia é horrível, não há relação, saca?

- Claro... - Deu de ombros - e foi por passar a vida sentindo pena de mim, que ela começou a se odiar por ter gerado alguém tão...desprezível...então ela foi embora...não sei pra onde...sumiu, melhor assim! Pobre Jacqueline, ter uma filha que não sente a sua falta...

Ela viu troféus na prateleira, andou até lá e pegou um deles. Ele se levantou num susto e correu até ela tomando o troféu de duas mãos e o alinhando na prateleira de volta. Respirou fundo...conferiu se estava tudo no mesmo lugar e olhou pra ela num misto de alívio e censura, ela retribuiu com olhos assustados.

- E a lasanha? Você mal tocou nela!

- Se eu quebrar os seus troféus você cria a coragem que eu não tenho de me matar? Ah...e a propósito, se você banhar o frango com um pouco de vinho e não tiver medo de testar temperos para o molho a lasanha fica melhor, mas está boa assim de qualquer forma.

- Acho que você teria que tocar fogo nesse apartamento pra eu ter coragem de te matar, ou ao menos de dizer que você é ruim por ter quebrado os meus troféus. E obrigada pelas dicas, tentarei mudar os temperos na próxima.

- Você não me conhece...como sabe que eu não sou ruim???

- Você ajudou a velhinha atravessar a rua na última quinta. E a sua blusa do AC/DC me denuncia que você é uma boa pessoa...

- Então me conte...o que você sabe sobre a filha da Jacqueline?

- Porra nenhuma... sei que ela sempre vai do restaurante pra casa...nenhuma fresta na porta...nenhuma pista sobre namorado...nenhuma compra absurda na padaria ao lado. Só os mesmos cabelos vermelhos e o olhar preto como uma graúna, vazio.

- A filha da Jacqueline é a menina sem qualidades.Sabe porque?

- Porque?

- Ela é alheia à dor humana. O ser humano se orgulha da dor que sente...se aprisiona nela, acha bonito. Se alguém morre...quem mais sente a dor é a melhor pessoa. Competimos pra saber quem sofre mais. A filha da Jacqueline não se importa com isso. Por desprezar a dor ela não tem namorados, por não sentir as perdas ela viu todos irem embora...
por isso não há muito o que saber sobre ela.

Ele revirou os olhos e se voltou para o seu vinho, desprezando o discurso dela, que continuou divagando.

- Por isso talvez não seja justo alguém assim continuar vivo.

- Escuta agora o que eu vou falar, tá certo? - Disse ele tentando interromper o monólogo interminável.

- ...não existem frestas na porta...vivo lendo no meu quarto. Sim, fale.

- Tá, escuta... - bebeu mais vinho, tirou a blusa...a casa estava quente, respirou fundo e criou coragem pra falar: Sabe mestre pi, eu... já vivi coisa pra caralho nessa vida estranha e desde que virei ator,não paro em canto algum; vivo mudando de lugar, passando uns meses aqui e outros acolá; tenho esse apartamento aqui porque venho visitar meus pais e porque eu tenho que ter algum endereço pra receber minha encomendas.  Os últimos tempos me fizeram ficar aqui...as pessoas não querem muito ir ao teatro. Na verdade nem eu mesmo quero mais, e apesar de fazer ponta em cinema, acho que nasci pr'aquela bagaça que tá de definhando...mas isso não vem ao caso.

- Eu gosto do teatro - disse ela tentando dar sentido ao que ele falava - enfim...continue.

- O que quero que você saiba é que se eu realmente fosse morrer eu iria querer pelo menos ouvir algo significante...

Enquanto Igor falava, ela lhe lançou o que julgou ser o melhor que pôde dar do seu olhar de reprovação e de "eu não preciso que você diga algo significante por pena de que eu morra sem ouvir algo especial", mas não disse nada...o deixou falar.

-  Bem...eu gosto dos seus olhos, dos seus cabelos e das roupas estranhas que você usa, mas o que eu gosto mais de você Mestre Pi...o que eu mais admiro em você...e é o que me faz estar aqui perdendo o meu tempo é esse desejo incontrolável de querer ter conversado contigo algum dia...ter conhecido você, embora isso não faça sentido. Esse imã que me faz aproximar de você...eu to viciando em te ver. Meu coração quase pula pela boca enquanto eu falava contigo sereno; parecia que eu estava no municipal com centenas de pessoas olhando minha performance enquanto eu tentava continuar sereno, calmo, tranquilo...

Ela enrugou a testa tentando achar algum significado lógico em tudo que ele tinha dito daquele jeito gaguejado e nervoso. Não encontrou resposta.

- Acho que o vinho está fazendo efeito - Concluiu Igor em meio a sua decepção - estou falando mais do que deveria...enfim, a chave está na porta, se quiser voltar, claro...

- Quer saber meu maior segredo?

- Manda...

- Há um mês atrás...eu encontrei minha cura.

- Qual?

- Você acabou de ver...lá fora!

Desta vez foi ele que enrugou a testa tentando entender o que ela dizia, mas ela - mais uma vez - o desprezou e continuou a falar.


- Existe uma linha invisível entre a vida e a morte, a coragem e a covardia, a atitude e a inércia. Lá em cima eu consigo andar em cima dessa linha...lá eu me sinto viva...porque sei que se eu der um passo posso morrer! Lá em cima...eu deixo de desprezar a minha dor. Talvez eu não precise subir...mas fazer aquilo todos os dias me impede de morrer por dentro
o que - afinal de contas - é a pior morte.

- Digamos então... que eu seja a morte; que estou esperando você por todos esses dias, afinal de contas, me explique como você chegou hoje ao térreo? Ou melhor! Me explique como está usando essa blusa branca de botão que nem existe no seu armário...melhor ainda, me explique porque você está deitada em minha cama nua se estava agorinha mesmo em pé, em frente a porta do meu "apartamento"...porque não me beija? Porque não termina logo isso de uma vez?

Ela arrumou o travesseiro, abotoou a camisa, bateu as cinzas do cigarro e olhou pra ele frígida.

- Porque se você é a morte eu preciso dormir todas as noites com você na dúvida do que será feito de mim pra poder me sentir viva.

- Então venha, me use e não me beije. Fode com a morte...durma com o inimigo sua piranha! Nas não esqueça de apagar as luzes quando sair...

Ao contrário do que ele pensava ela não se ofendeu; levantou lentamente e andou até a janela. Prendeu os cabelos assanhados e deixou que ele a olhasse vestindo sua camisa, e apenas ela.

- Se eu te beijar vou ser sua, é isso que você quer? Vou deixar de ser alheia a sua dor pra sempre e vou te perseguir como você fez comigo.

- Engraçado, eu to viciado em você.

- Você quer que eu seja alguém como você?

- Fazer com que você me beije, assim de forma rápida, não terá brilho. Eu quero que isso se torne algo apoteótico...na verdade eu amo tanto você que eu queria que você me matasse, me esfolasse..."matar a morte e matar a terra fazendo com que isso tudo exploda de uma vez deixando todos vivos sem mais esforço meu!"  Bem...eu estou apaixonado por você como um ator barato de uma novela mexicana. Mas vamos fazer o seguinte: Durma, amanhã nos encontraremos lá de novo, você acordará no parapeito e não lembrará de hoje; assim podemos repetir essa mesma noite todos os dias...um dia eu te acordo do coma e quando você descobrir o looping será maravilhoso!!
  Ou me beije agora e nunca mais sentirá a sensação de estar viva pelo simples motivo de quase morrer.

- Você é o meu ator barato de novela mexicana...eu sou alguém sem sentimentos nem qualidades...você irá dormir na sua embriagues apaixonada enquanto me olha fumar um cigarro aqui na sua janela...vai acordar sozinho na cama e esperar a minha volta no frio da cobertura todas as noites. Vou te beijar antes de ir embora...enquanto dormes...e vou viver sabendo que alguém me espera todos os dias até o dia em que jogue a minha covardia de cima do prédio e acabe com isso de vez.

- Você fez a sua escolha...durma bem, minha linda...Bianca Aragão! Tenha bons sonhos.

- Como você sabe o meu nome?

- você não gostaria de saber...

- Maldito seja! - Disse ela enquanto olhava ele finalmente cair no sono.

Juntou o resto de suas roupas, observou ele dormir por uns trinta minutos, finalmente lhe deu o beijo prometido e foi embora deixando um bilhete que dizia: Até um dia...



Kamila Tavares e Pedro Aragão.