quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Anísio com Z.

"Alguém me disse que tu andas novamente
De novo amor
Nova paixão
Todo contente..." (Anísio Silva, 1960).

O primeiro fato a ser contado hoje é que eu passei toda a minha vida cercada pelo seu nome. Nas capas dos discos, nos encartes das coletâneas que meu pai montava e nas histórias que ele me contava aos domingos sobre como Anísio tinha a voz macia e que não se faz mais música como antigamente.
Anísio Silva foi um famoso cantor de boleros nascido em 1920; mas não é dele que eu pretendo falar. Esse Anísio Silva se escreve com Z.

Primeiro o conheci como Diego, o que é um crime para quem carrega em sua identidade um sobrenome tão bonito. Ao mesmo tempo é um presente, pois como se trata de um tesouro antigo, acabo por ser a única pessoa a chamá-lo de Anízio com tal significado.
Suas feições suaves carregam dentro de si um gênio forte! Resultado de suas experiências passadas e histórias ainda não contadas; mas em volta do meu corpo seus braços são só carinho.

Chovia um pouco quando tentei sem sucesso me esconder no estacionamento do restaurante pra fumar sem ser notada. Só me lembro de sentir um abraço forte que veio do nada e da voz dele me falando o quão era bom ter outro fumante ali, pois ele era o único até a minha chegada. Não me disse seu nome nem gravei seu rosto até dias depois quando ouvi alguém falar com ele e o chamar de Diego.

Desse dia em diante começamos a nos ver mais, conversar mais e nos desembrulhar-nos mais desse mistério que é conhecer o universo de outra pessoa.
Nossos mundos sempre andaram em paralelo sem nunca colidirem, e cada dia ele me presenteava com um fato novo que me levava a crer que eu estava mesmo no lugar certo.

Veja bem...Ele ama a neblina e a forma com que ela cobre os prédios, e gosta de observar a lua e imaginar como estaria o céu sendo visto de uma cachoeira.
Quando ele quer soar mais formal, a voz dele ganha um sotaque que não sei de onde veio, mas acho muito bonitinho.
Ele também tem a voz de quando fica muito muito puto com alguma coisa, quando todas as frases se encaixam nos intervalos de vários "vai se lascar", a voz de cansaço, de quem chegou depois de um cochilo bom e a voz animada de "preste atenção nessa história".
Ele tem um jeito muito engraçado de cantar e mais engraçado ainda de dançar...o que me lembra muito meu pai cantando e dançando pra minha mãe na cozinha enquanto ela fazia o jantar.
Meu pai inclusive adorou a visita dele assim de surpresa...igualmente encantado por ele se chamar Anízio. Não é fácil pra mim deixar alguém entrar assim na minha vida e marcar um café com papai...mas não sei como ele chegou escancarando as portas e arrancando minha carcaça sem cerimônias...como se a gente se conhecesse a vida toda.

Apesar de nos vermos diariamente, nosso tempo é muito pouco. Talvez por isso eu tenha a sensação de que na maioria das vezes ele está com pressa. Temos sempre um horário a cumprir...o que nos levou a criar uma rotina:

Ele me da um abraço de bom dia, me pergunta como dormi, me conta de sua insônia, fumamos um cigarro, eu geralmente almoço...Ele pula a refeição e fica beliscando, durante a tarde ele aparece fazendo algum prezepe pra me fazer rir. Geralmente um dos dois eventualmente se estressa...ou os dois ao mesmo tempo.
Às 18:30 ele volta sonolento...Eu já estou lá. Ele arruma os cabelos no retrovisor, me abraça forte, me aperta, conversamos e voltamos ao trabalho. O cheiro dele fica em mim por umas duas horas...Deus como é cheiroso. Nos estressadmos novamente e se eu saio mais cedo, espero por ele.
Voltamos pra casa e eu venho assanhando os cabelos e ele dando os tremiliques dele com o frio, e sempre acontece algo que me faz soltar uma gargalhada. Ele me arranca risos de todas as formas.

Já em casa, por breves minutos temos nossa dose de cappuccino e paz. De compartilhar músicas, falar de filmes e fazer tudo aquilo que fora daqui não podemos...Essa é a melhor hora do dia.

Inclusive falar de filmes não é seu forte. Descobri isso essa semana quando ele foi me indicar um filme e me contou o final e tudo.
Mas eu adoro quando ele me fala de música e me conta histórias...

Ele não tem uma árvore preferida, mas tenho a sensação de que se um dia ele tiver...será Ipê amarelo;
Ele tem uns cabelos brancos que eu amo, mas ele insiste em cortar;
Quando termina o expediente ele solta a camisa de um jeito muito bonitinho;
Ele tem a mente suja e sempre me fala umas coisas muito baixinho de propósito porque ele sabe que eu não vou escutar, daí eu sempre fico perguntando o que foi e ele ri da minha cara e diz que nao vai repetir;
Ele sente cócegas diferente das outras pessoas...ao invés de rir ele da um grito e pula como se tivesse tomado um murro E EU ACHO MUITO ENGRAÇADO.
Ele tem uma mania de me dar uns apertos como se fosse um desfribilador ou como se ele fosse me salvar de um engasgo...E isso um dia me deu um refluxo desgraçado; mas eu continuei deixando ele fazer isso porque ele faz uma cara de guri ruim na hora que eu nem sei como faz pra lidar;
No aniversário dele eu escrevi à mão uma receita de carbonara com todas as dicas possíveis: ele fez a receita e foi tirar as dúvidas com um colega nosso...EU FIQUEI COM MUITA RAIVA, até ele dizer que só queria me mostrar quando aceitasse 100% aí eu achei lindo né?!
Ele ri toda vez que beija a minha mão e eu falo "Oh, Gómez!"

Eu deixei ele ler um texto meu sobre ele e me mostrei vulnerável pela primeira vez;
Ele confessou que estava com medo de se apaixonar e se mostrou vulnerável pela primeira vez;
Semana passada ele me prometeu que viria, por sempre acreditar em promessas acabei esperando a noite inteira sem resposta; no dia seguinte ele notou minha insatisfação e tivemos aquilo que julgo ter sido nossa primeira discordância.  Quando ele não quis olhar pra mim e me tratou com rispidez eu fiquei não nervosa que nem trabalhar direito eu consegui...corri chorando pro banheiro, me olhei no espelho pra lavar o rosto e pensei "puta merda hein?! Medo é pouco...Eu tô é apavorada!!"

Tudo dentro de mim virou do avesso com medo de perde-lo. Não tive sossego até ele voltar e me dizer que foi uma brincadeira (DE PÉSSIMO GOSTO). Mas naquela hora eu percebi que por mais breve que o nosso tempo seja, um dia sem ele já me causa uma terrível saudade.

Como não sentir saudades de alguém que não tem problema algum com a presença da uva passa no arroz da ceia de Natal? IMPOSSÍVEL.

Ele tem esse ar de estudante de filosofia que largou o curso no segundo período e nota essas coisas que eu falo e penso que passaram sem ser notadas.

E um maldito sinal ao lado do nariz...

Ele me tira dúvidas gastronômicas e diz que tem muito a aprender comigo, mas eu também aprendo muito com ele (inclusive ele vai me ensinar a pilotar sim).

Hoje ele me levou um docinho, e eu tirei a mancha de pasta de dentes da gravata dele que já estava me incomodando...igual a presilha que eu sempre arrumo quando está torta, e ele em troca dobra as mangas da minha camiseta.

A gente passa uns segundos se olhando e sorrindo um pro outro, que duram horas...E eu sinto meu coração já todo desmantelado se desmanchar inteiro e me dá um frio na nuca por não saber como dizer que eu não quero que ele vá embora nunca, porque depois que ele chegou minha solidão deixou de ser confortável e passou a me tirar o sono; mas perto dele os minutos voam.

"Mas como eu já lhe disse...Eu vivo o hoje!"

E de hoje em hoje eu espero o amanhã.



Kamila Tavares.



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