sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

House of cards.


Ele pôs a mão na minha coxa. Não apertou, não moveu os dedos...só pousou a mão na minha coxa enquanto a outra segurava o volante e seus olhos atentos apontavam em todas as direções da avenida movimentada...só pousou a mão na minha coxa esquerda dizendo em silêncio que estava ali...e eu senti.

Não entendo nada de partículas, moléculas, átomos e essas coisas todas, mas senti a minha pele formigar sob a sua mão que - ali mesmo, imóvel - dividia faíscas e uma energia que eu nunca senti na vida, mas era algo magnético porque me fez querer ficar sentada naquele carro pra sempre.

Enquanto isso o meu rosto sem expressão olhava pela janela...fechei os olhos e senti o vento entrar em todos os meus poros...poluindo minhas bochechas rosadas do sol com a fumaça dos caminhões e confundindo meus ouvidos que não distinguiam mais o som do vento, do rádio ou do motor do carro...e minha mão voava feito uma pipa na janela...dançava como uma de suas bailarinas, leve...leve...leve... E naquele momento eu senti cada célula do meu corpo se agitar e palpitar por um minuto a mais das mãos dele em mim quando ele precisou trocar a marcha pra parar no posto de gasolina e pedir uma informação; então meu corpo momentaneamente se desligou daquele coma agradável e eu voltei pra realidade.

- Vá até o fim da avenida e faça o retorno, tem um posto bem na esquina, pergunte lá e eles vão saber lhe informar.
- Muito obrigada!
- Nada, senhor! - Disse o frentista.

A voz dele mudava de acordo com a situação...pelo menos era isso que ele achava, mas eu sempre escutava uma nota infantil em suas palavras...não aquela infantilidade imatura, irresponsável - mas uma infantilidade leve, divertida, descontraída...sem querer eu sorria sempre que ele falava com os outros com um ar de adulto que não me convencia...ele alisou meu joelho, as faíscas voltaram a iluminar tudo em mim e eu beijei seu ombro direito e dei uma mordidinha antes de voltar a contemplar o dia indo embora pela janela. Meu celular tocou, não atendi.

- O que foi, bebê? - Perguntou.
- Nada
- Tem certeza? - Insistiu.
- Tenho sim...o dia foi cansativo, só isso! Preciso de um banho.
- É verdade! Agora você sabe o que eu enfrento todo dia...desculpa ter que te levar pra trabalhar comigo, eu de fato não podia faltar...queria levar você pra passear mas foi meio que de última hora.
- Não tem problema - disse com honestidade - eu adorei os seus amigos, foi muito divertido! Só não estou acostumada ao clima.
- Tamo já chegando em casa, cê toma um banho gostoso e eu cuido de você, tá bom? Faço cafuné, dou beijo, abraço...cê vai se sentir melhor...
- Claro - disse sorrindo - é exatamente o que eu preciso!
- Entãããão tá bom! Agora escuta essa música!

Escutei a música e escutei ele cantando junto, feliz, satisfeito enquanto brincava com o meu joelhos e as pontas dos meus dedos...e eu olhava satisfeita as expressões que ele fazia enquanto dirigia...gosto de olhar ele dirigindo, no controle da situação...e a voz dele que acabara de perguntar se eu estava bem ainda ecoava...ele tem outra voz pra me perguntar as coisas, mais doce...quase cantada, quase derretendo pra fora dele...e eu gosto de ouvir. Ele também tem a voz de explicar as coisas...mais rápida, invasiva, alta o bastante pra ele defender suas teorias e suas preferências...e eu gosto de ouvir essa voz também, porque evidencia o problema de dicção que ele tem e eu acho tão bonito.

Durante os silêncios eu lhe dizia mil coisas, e acho que ele escutou todas elas de alguma forma...e me confessou algumas outras mil coisas também. Mas eu não me importava com a sua falta de amor em certas horas, porque a gente soltava faíscas e por maior que fosse o meu sofrimento ele me mantinha segura, ele me salvou de mim mesma e eu o salvei dele mesmo, porque sempre fomos os nossos piores inimigos...sempre fomos vilões de nós mesmos, mas com ele por perto eu soltava faíscas de felicidade, sorrisos de boas vindas, lágrimas de amor e suspiros de tranquilidade.

Eu disse em silêncio que o amava, e que por isso iria machucá-lo - ele entendeu.
Eu disse em silêncio que não o amava mais, e que por isso iria deixá-lo - ele entendeu.
Eu disse em silêncio que o amaria pra sempre, e que por isso iria esperar - ele entendeu.
Eu disse em silêncio que o amava mais não acreditava mais nele, e que por isso iria odiá-lo - ele entendeu.
Eu disse em silêncio que sempre iria acreditar nele, e que a gente ia ser feliz - ele entendeu.
Eu disse em silêncio que tudo daria errado, mas que no fim daria certo - ele entendeu.

Ele sempre me entendeu, não por entender tudo que eu dizia, mas por entender que eu sempre dizia alguma coisa...que essa alguma coisa sempre era diferente e que mais cedo ou mais tarde mudaria, mas eu continuaria lá porque eu nunca pretendi partir...ele sempre me entendeu e eu sempre o conheci. E meu mal é conhecer cada centímetro dele...ver a beleza que ele não via em sí...meu mal foi sempre contar tudo...meu mal foi deixar ele me entender...foi por ele ser entendida.

E o mal dele foi entrar sem saber se queria ficar ou sair, foi vender indecisão com o rótulo da certeza e mentir pra si, sabendo que eu o conhecia...não de hoje, não de ontem...de outras vidas.

Ele falava sobre filmes - pelo que me lembro - e gesticulava bastante...olhei bem o rosto dele e permaneci calada e sorrindo em concordância com tudo que ele dizia...observei suas linhas de expressão, seu cabelo milimetricamente bagunçado, seus olhos castanhos e seus ombros bem desenhados, até que ele parou de falar julgando ser aquele um assunto muito chato - discordei de imediato e pedi pra ele continuar. Naquelas horas eu brincava com o tempo enquanto alguma música suave tocava e eu via tudo se movendo devagar...e seu raciocínio se alongava por horas enquanto eu assistia ele todo articulado...e os seus olhos castanhos.

Eu não me lembro mais o cheiro que tinha, mas me lembro da fumaça do cigarro no escuro e todas as cores do dia, e todas as vozes, todos os toques e todas as brigas. Me lembro de todas as músicas e da chuva no meu rosto...do abraço desesperado, do sono...dos olhos castanhos e dos erros meus...me lembro da mão invisível puxando meu coração pra fora todos os dias e me arrancando lágrimas e pensamentos de vingança que nunca consegui concluir...me lembro das faíscas e da mão dele pousando em minha coxa...e não importa quanto tempo passe, eu me lembro.


Kamilatavares.

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