terça-feira, 6 de agosto de 2013

Quimioterapia.

      Se eu diminuir o volume do som consigo escutar eles conversando do outro lado da porta, se eu descansar de olhos fechados consigo sentir eles me espiando parados na porta, consigo ouvir seus pensamentos sobre como eu cresci...sobre como eles não querem que eu vá embora.
      Essa semana um estudante de medicina foi falar comigo no hospital...ele recolhia histórias e tinha aquele brilho nos olhos de quem nunca viu a morte e ainda pensa que vai conseguir salvar todo mundo. Andei lendo o que ele e tantos outros escreveram sobre nós...jovens heróis...jovens guerreiros...exemplos de vida.
      É preciso ter a certeza que a morte está chegando pra ser exemplo de vida? Mas se todos sabem que um dia vão morrer porque não aproveitam logo ? Eles pensam que vão ter todo o tempo do mundo...a diferença é que eu sei que não o tenho.
      É duro pra mim dizer isso, mas a realidade é bem diferente dos filmes, e eu demorei pra aceitar isso em meio a minha terapia de no mínimo um filme por dia. Na minha realidade o grande amor da minha vida que iria cuidar de mim até o dia em que eu de fato vá embora não existe; eles tem medo...e os que não tem eu tratei de afastar, quer saber porque? A gente não aguenta esse olhar de pena que vocês nos lançam. É como viver o seu velório durante meses...repetidas vezes.
      Não tenho escolha a não ser lutar, ser "guerreira"..."exemplo de vida" não é uma opção pra nós, é uma obrigação! Por mim eu me sentaria numa cadeira e esperaria pela morte assistindo o que o cinema tem de melhor. Mas quando a visão fica turva e a sua mãe corre da cozinha pensando que essa é a hora final e você sente o tremor daquelas mãos geladas implorando pra que você fique, não lhe resta outra coisa a não ser lutar. 
      A perspectiva de vida vai toda embora, não existe mais "o que eu vou ser quando crescer" ou "quando eu me formar" ou "quero ter dois filhos com você" porque qualquer hora pode ser a última...eles todos sabem, mas se cria um ambiente de enganação pra todo mundo pensar que existe um dia a mais pra se desperdiçar.
      Tentei parar o tratamento por achar que trocar dez dias de hospital por um dia de rua seria bom pra mim...e era! Mas só pra mim! Eles não querem, meu pai chorou...eles são egoístas e querem que você fique o máximo possível mesmo que pra isso o seu corpo vire picles e vegetar seja a única coisa que lhe reste.
      Nesse filme chamado realidade as cenas de vômito são bem mais frequentes que as visitas do par romântico, o expectador consegue sentir o cheiro do hospital, varrer os meus cabelos caídos no chão e escutar meus gemidos de dor quando está muito frio. Deixei de escutar algumas músicas porque certas notas fazem meus ouvidos doerem...
      Quando eu tinha dez anos lembro que eu transformava cada gripe em um evento digno de novela mexicana só pra não ir pra escola e ficar deitada na cama enquanto a minha mãe cuidava de mim e me dava tudo o que eu queria comer. Hoje não sinto nada além de sede e náuseas. A enfermeira vem amanhã...conhecerei a famosa Morfina, que será minha companheira nos próximos e últimos dias.
      Mas de fato eu já morri. Ninguém me contraria mais, por mais irritante que eu consiga ser...quando eu passo pela cozinha e ela está lavando a louça consigo escutar os soluços do choro inconformado. Morri mas Deus ainda não me levou porque preciso passar um tempo consolando os que vão ficar, porque eles ainda são muito egoístas pra me deixarem ir.
      Tentei fazer uma daquelas listas que toda menina do câncer tem sabe?! Aquelas com coisas aleatórias que elas querem fazer antes de morrer...mas descobri que já fiz quase todas elas antes de ficar doente, e o mais engraçado é que essas listas sempre tem coisas perigosas e ilegais no meio, mas ninguém se irrita ou reprova porque afinal de contas, você está morrendo...quase morrer te dá direitos que os vivos não tem! No meu caso eu as fiz e todo mundo se irritou, porque eu não tinha tais direitos. Bebi, fumei, dirigi sem documentos, fiz uma tatuagem escondida, fumei maconha, usei LSD, recusei a cocaína, vi o Sol nascer inúmeras vezes, pulei a catraca do ônibus, faltei aula pra ficar com alguém, voltei pra casa depois de uma festa escoltada pela polícia...e sofri as consequências de tudo. E não me envergonho! Fazer tudo isso quando se tem uma vida pela frente é suicídio...fazer tudo isso quando se sabe que vai morrer é aproveitar a vida que lhe resta. Vivemos constantes paradoxos...e eu vejo beleza nisso. Mas minha mãe que um dia chorou me chamando de marginal e pequena delinquente hoje me santifica...porque a partida apaga tudo o que é de ruim que a gente tem...lava os nossos pecados...tira as notas vermelhas do seu boletim.
      Meus amigos foram todos ficar carecas junto comigo...até duas das meninas foram corajosas. Se espantaram porque eu não chorei...na verdade sempre tive esse desejo secreto de ser careca só pra sentir o vento na minha cabeça e não precisar de condicionador ou passar horas no cabeleireiro. Minha cabeça tem um formato estranho...me lembrei que tinha orelhas. Engraçado comos meus ossos ficaram evidentes, eu acho até bonito sabia?! Sempre fui gordinha...ver os meus ossinhos é um prêmio de consolação. Mórbido, mas é.
      Houve um tempo em que eu pensei que fosse ser carregada nos braços no dia da minha lua de mel...lembrei disso quando acordei sem conseguir andar e meu pai fez a gentileza de me carregar até a sala. Ele já está velho - o meu pai - mas tem mais saúde que eu! Um dia ele disse que se pudesse trocaria de lugar comigo...ele não sabe que eu escutei isso...eles não sabem que eu escuto muitas coisas.
      Um ano se passou desde o começo, e já estou muito mais fraca...há 365 dias eu vivo o último dia da minha vida. Fiz um cupcake pra comemorar, mas não consegui comer ele inteiro. Meus ossos não doem mais, o que dói é ter que consolar todo mundo todos os dias até eles se convencerem de que eu não vou estar aqui no Natal...e toda noite eu me preparo pra viajar quando adormecer...minhas malas estão prontas, estou esperando o trem partir.

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