Entra...mas não repara a bagunça; é que andei bebendo muito, comendo
pouco, dormindo quase nada e esquecendo de abrir as janelas. Os boatos são
verdadeiros, agora você pode ver com seus próprios olhos...ela foi mesmo
embora. O ruim de quando alguém que a gente ama morre é saber que a pessoa não
teve escolha, ela poderia ficar comigo pra sempre, ou me trair, ou ir embora
simplesmente ou até ter um filho meu, criar um cachorro, plantar um jardim...
mas ela foi levada sem ter o direito de escolher que chá ela tomaria amanhã.
Se sente...mas não repara na falta de fotos; eu guardei todas numa caixa
lá no quarto, junto com aquelas cortinas que ela bordou e as almofadas
preferidas dela. De repente aquela porção de fotos espalhadas pela casa me
assombraram e me fizeram mal. Os olhos verdes...não consigo parar de pensar nos
seus olhos verdes...e nas tardes que ela passou bordando aquelas cortinas.
Ela tinha tudo que se esperava de uma mulher pra passar o resto da sua
vida agarrado a ela. Sabe aquela inteligência assustadora?! Ela conseguia
manter o nível da conversa sempre elevado e falava bem sobre quase todos os
assuntos. Por vezes eu me perguntava de onde vinha tanta coisa que ela
sabia...e aquele sorriso!!! Era o melhor bom dia de todos...ver ela sorrindo e
sempre que percebia meu olhar de admiração se envergonhava e colocava a mão na
boca "não amor...acordei com bafinho". Sem contar nas coisas
maravilhosas que ela cozinhava e tudo nela...simplesmente tudo me agradava.
Pode fumar aqui sim, aproveita e me dá um cigarro que eu vou fumar
também...mas não repara se eu chorar na sua frente. Eu sei que uma das coisas
mais estranhas do mundo pra você é ver um marmanjo como eu chorando, são
momentos raros...mas não tenho mais aquele emocional invejável. Nem aquela
aparência invejável...nem sei há quantos dias eu não faço a barba, ou passei um
pente no cabelo. Não...não se preocupe. O luto não dura pra sempre meu caro
irmão, e um dia eu vou voltar a ser aquele cara organizado...mas por enquanto
deixa a merda feder...foram 5 anos de sangue, suor e América do Sul perdidos em
uma noite de angústia naquele maldito hospital. Me deixe sofrer...pelo tempo
que eu precisar.
Eu preciso que você entre lá...mas não repara se eu tentar fazer você
mudar de ideia. É que tem umas coisas dela pra empacotar, e eu preciso que você
faça isso por mim. Não vou ter coragem, na boa! Mas deixa aquele vestido
amarelo que ela usou naquele almoço na sua casa, no dia que eu a conheci. E os
sapatos vermelhos de usar todas as sextas. Ela amava aquele sapato! Deixava ela
da minha altura, toda sexta ela me dizia isso...salvo essas duas coisas,
empacote todo o resto e leve daqui...a mãe dela andou me ligando, por favor
diga a ela que eu estou bem, que apareço lá semana que vem pra deixar algumas
coisas que eu gostaria que ficassem com ela, o presente de dia das mães que a
gente já tinha comprado antes do acidente e aquela canequinha que ela tinha
desde o tempo da escola.
Tudo bem...me abrace só hoje...mas não repara se eu me acostumar. Talvez
eu volte um cara mudado...desses mais - como é que se diz? - inclinado a
abraçar os amigos e dizer que ama as pessoas importantes. É que de repente a
gente descobre que cada dia pode ser o último, e depois que eu limpar esse
apartamento - e me limpar também - eu não vou poder me dar ao luxo de perder
boas oportunidades. No mais é isso...
Kamilatavares.
Nenhum comentário:
Postar um comentário